Não é o seu cachorro que é racista

Confira o belo artigo escrito por Alex Castro e recomendado pela minha amiga Renata Ferreira  que trata de como pode ser sutil e inconsciente nossa comunicação com os cães de "nossa matilha". Leia o texto na íntegra abaixo.

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hoje, andando pela rua com o oliver, cruzamos por uma bela moça num carrinho de bebê e o oliver, pro meu imenso orgulho, fez festinha e tudo, cachorro charmoso que ele é. logo depois, cruzamos por um negão mal-encarado e o oliver, pra minha imensa vergonha, só faltou querer estraçalhar o moço, cachorro protetor que ele é. pedi desculpas e saí de fininho.

será verdade que cães podem ser racistas?

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criamos os cães à nossa imagem e semelhança. passamos milênios selecionando geneticamente cães com base em um único critério: sua compatibilidade conosco. sua capacidade de nos ler, nos entender, nos servir, se adaptar a nós.

quando seu cão late para o moço da geladeira, não é porque ele é um bom juiz de caráter, ou sabe quando “tem alguma coisa errada”, ou possui poderes sobrenaturais, ou tem capacidade de “ler almas”. provavelmente, ele não está nem mesmo latindo em reação ao moço da geladeira em si. o seu cachorro não sabe negociar com técnicos, ele não conhece as dicas sutis de que um prestador de serviços está enrolando ou superfaturando um trabalho. quem sabe essas coisas é você.

o seu cão está reagindo à única coisa no mundo na qual ele é expert absoluto: você. ele está reagindo a mudanças no seu corpo que são tão sutis que você nem mesmo percebe mas que ele consegue captar. batimentos acelerados, suor, diferença na voz, algum tique físico que reconhece como uma típica reação sua ao estresse súbito. seu cheiro, seus hormônios, seus humores, sua voz, seus gestos.

seu cachorro não tem poderes sobrenaturais, nem sabe nada que você não saiba melhor – com uma única exceção. seu cão sabe confiar em seus próprios instintos caninos e, inclusive, confia mais nos SEUS instintos primatas do que você mesmo, que provavelmente os racionaliza. você, ao mesmo tempo em que dá um inconsciente passo atrás em resposta a algo suspeito que fez o moço da geladeira, também pensa: “que besteira, estou sendo paranóico”.

seu cachorro, por outro lado, leva essas coisas a sério. e faz bem.

(esse trechinho parafraseia o livro as virtudes do medo, de gavin debecker.)

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então, voltando ao exemplo inicial, não é o oliver que é racista, coitadinho.

sou eu que, mesmo sendo tão liberal e avançadinho, mesmo dando bom dia ao moço e não trocando de calçada (olha eu falando isso como se fosse grande vantagem!), ainda assim meu corpo deve tensionar, ainda assim eu devo me colocar em posição de alerta, ainda assim eu devo reagir ao homem como se ele fosse uma ameaça maior do que a mulher com o bebê.

e o oliver, que não é bobo, repara. e faz bem.

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releia o primeiro parágrafo. o oliver nem precisaria estar presente: ele poderia ter latido para o “negão” só pela minha escolha de palavras. é assim que falamos. nosso racismo exala pelos poros, pelas entrelinhas.

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Texto publicado em 16 junho de 2011 por Alex Castro em seu Blog (http://alexcastro.com.br/).